Fantasmas

em quinta-feira, março 18, 2010
Ele era um fantasma naquela manhã... Acordara sem vontade nenhuma de fazê-lo, e enxergava nada além de nada quando fitava as horas do futuro, e os dedos percorriam as rachaduras de sonhos indômitos abandonados na atmosfera um tanto fria daquele quarto sem valor.

Nem tempo, nem espaço. Sentia-se, mais do que nunca, fora de lugar. Então, um crescente desconforto rapidamente assaltou-lhe o peito, enquanto o sangue despachava insegurança a todas as extremidades de seu corpo. Era como um mórbido convite o observasse à distância, paciente, aguardando. Pensou em gritar por socorro, mas quem lhe ouviria o clamor?

E foi na solidão desse ligeiro instante que aportou-lhe enfim o caloroso afago da compreensão; aquela sensação de quando se finalmente chega em casa, há tanto ofuscada pelos faróis de milhares de veículos que riscam a cidade apressados tateando a noite em busca duma única certeza. Quando se viu invisível então num estalo percebeu que fora assim sempre. Lembrou de seu berro que escapou abafado em todos aqueles anos sem nenhum preenchimento.

Mas quem realmente é ouvido ou enxergado nessa vida? Ponderou por um segundo que manifestamos no máximo um leve calafrio quando desajeitadamente invadimos o raio de ação de outro alguém.

Somos todos fantasmas. Sempre fomos desde que surgimos, pois ninguém nos ouve ou nos enxerga de fato. E somente os poucos pêlos que involuntariamente se arrepiam no braço é que revelam a tímida proximidade de outro ser humano.

Como médiuns que renegam seu dom, assim tornamo-nos deliberadamente insensíveis, porque assusta demais ouvir os sussurros que se equilibram na poeira enclausurada dos decadentes sobrados da existência. Abafamos os ouvidos com travesseiros para esquecer o arrastar de correntes que nos assombra as insones madrugadas de aflição. E tentamos de todas as formas possíveis tapar o sol com as peneiras antigas de nossa indiferença.

Quem realmente já o ouviu? Quem o conhece? Quem já o viu? Quem tocou seu coração? Parou por um instante e constatou que, embora tenha tentado, nunca experimentou de verdade o mágico aturdimento de almas que se encontram e se reconhecem em pleno tumulto da romaria. O evento raro de um choque entre planos conflitantes.

E quem realmente te ouve? Quem te conhece? Que já te viu? Quem tocou teu coração? Talvez ninguém, e somos todos mesmo comprovadamente fantasmas, almas penadas, perdidas, a cada manhã em que somos obrigados a levantar, por medo das coisas que não entendemos, por receio do ruído das palavras que poderíamos pronunciar sem querer na fronteira da embriaguez de uma extrema sinceridade, e estamos todos condenados a vagar solitariamente, apavorados, através de um limbo de ilusões, até o dia em que a agonia de não enxergar, não ouvir e não falar sufoque de vez o coração da vida.

(Geraldo Pinho)



Saudade de postar aqui, gente! Agora acho que voltei de vez a blogosfera. Quis compartilhar com vocês esse texto brilhante e de humanidade tamanha do Geraldo, que também é blogueiro. Reflitam!

Postado por Erica Ferro

Um comentário:

Letícia disse...

Ericaaa!

Vc voltou, que bom!

Esse cara escreve muito! E sim, estamos todos fadados a solidão até que o coração esteja preparado o suficiente para abrir-se e permitir companhia.

Adorei!

 
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